Em quantas pessoas somos no mundo? Quantas são famílias? Quantos menores existem? E no Brasil, somos em quantos? Terra continental de palmeiras e passarinhos, que abriga tantas culturas e pessoas tão diferentes.

E eu, quem era? Mais um perdido no mundo, talvez. Entre tantas pessoas, tantas culturas e cores, eu era preto no branco, esquecido, encardido, largado no mundo… Eu não era visto. Eu podia até fazer parte do seu dia a dia, mas você não me via… É como se eu não existisse, tá ligado? Às vezes até me perguntava: Eu realmente existia? Será que eu era alguém? Eu fazia parte do mundo?

Mas eu também sentia frio, dor, eu também chorava. Às vezes, até sorria quando o cheiro da fogueira ia perfumando e esquentando o ar. Eu sofria de uma tristeza profunda. Me sentia perdido e sozinho. Vez ou outra alguém até me olhava e me atirava umas moedinhas. Outras vezes me olhavam para xingar e me atirar pedras, afinal eu vivia de restos, eu comia aquilo que os outros jogavam fora, me vestia com o que não queriam mais, eu brincava com pedras e galhos na rua, se é que você pode dizer que eu brincava, mesmo sendo menor.

Pai e mãe? Às vezes eu via, mas não era sempre. Às vezes eles me davam algo para comer, mas não era uma comida muito diferente da que eu achava. Carinho, você diz, nunca tinha visto. Tá bom ou quer mais açúcar?

E foi assim, sem fazer parte do mundo que um dia o mundo passou a fazer parte de mim. Andando na rua à noite eu vi um povo reunido e fui até lá. Eles cantavam umas músicas e diziam coisas que pareciam fazer parte do meu mundo… Ou da minha inexistência. Fiquei ali ouvindo. Noutro dia se reuniram de novo, dessa vez trouxeram umas tábuas com rodas, que eles subiam em cima e faziam movimentos muito diferentes.

Continuei a frequentar aquela banda e descobri que a tal da tábua se chamava Skate, o que eles cantavam era Rap e as falas eram Poesia marginal.

E foi assim que aconteceu, um dia alguém olhou para mim e perguntou:
-Ei você, fala aí mano da tua realidade.
-Tem nada não, mano. – respondi.
-Tamo junto irmão, aqui nois é pá. – ele insistiu.

Me enchi de coragem e arrisquei minhas primeiras rimas. Não saíram lá muito boas, mas ninguém riu.

Quando estavam todos se despedindo e se dispersando, uma cara chegou perto. Ele me viu; Conversou comigo por um tempo e disse “você deve tentar mais vezes. Quando eu comecei era assim também”. Ele me deu um dinheiro e disse para eu comprar comida. Naquela noite, pela primeira vez na vida, eu fui dormir sentindo uma coisa um pouco diferente.

Nas semanas seguintes continuei a frequentar aquela banda, mas minhas rimas não melhoraram muito, ainda assim continuei tentando. Foi preciso alguns meses para conseguir umas rimas boas. Comecei a cantar na praça e assim ganhar algum dinheiro, eram trocados, mas dava pra comer. Quando chovia ou o movimento era pouco, não ganhava nada. Num desses dias fiquei até a noite rimando na praça e senti um cheiro bem diferente. Cheguei perto de um povo sentado e me ofereceram o cigarro, era um baseado. E foi assim que comecei no caminho errado.

Virou rotina, depois de rimar, sentava e usava alguma coisa. Fui parando de rimar e passando a usar alguma coisa todos os dias. Tive que começar a roubar para conseguir algum din din pras drogas. E fui só me afundando.

Passei meses assim, por caminhos errados. Cheguei ser preso. Numa dessas vezes uma senhora, que devia ter uns 70 anos, chegou na cela e conversou com todos os presos. Ela também conversou comigo e eu contei minha história. Ela me convenceu a ir para um centro de reabilitação.

Os primeiros meses foram horríveis, mas lá conheci um povo legal e eles sempre me encorajavam. Foi difícil, mas consegui sair bem daquele lugar. De lá, a mesma senhora da cela me encontrou e me ajudou. Ela arrumou um emprego para mim, e fui ser repositor de mercado.

Quando voltava a noite para o barraco onde dormia, passava por uma pista de skate. Um dia parei ali e encontrei alguns parças dos tempos das rimas. Conversei com eles e um deles me emprestou seu skate, queria tentar umas manobras.

Gostei daquilo, me deu uma sensação de liberdade. Umas manobras mais arriscadas e caia no chão. Numa ocasião cheguei a quebrar o braço, o que me rendeu alguns problemas no mercado e tive que trabalhar dobrado no mês seguinte.

Mas não desisti do skate, falaram que eu tinha jeito para aquilo. Juntando um dinheiro do salário, consegui comprar o meu primeiro skate e ir treinar quando eu queria. Chorei bastante quando ele quebrou numa manobra mais arriscada. Demorei a conseguir dinheiro para outro, mas não deixava de praticar com skates emprestados dos parça.

Comecei a participar de campeonatos no bairro e vez ou outra conseguia me superar, isso para mim já era uma grande vitória. Dai, comecei a participar de campeonatos maiores, pude conhecer um povo fera no skate que me ensinou umas coisas novas.

Consegui ganhar um campeonato estadual, o que me rendeu mais visibilidade no mundo do skate. A minha vida tinha mudado pra caramba, a banda que eu andava me levava a lugares bons, longe dos caminhos errados.

Skate era o que eu curtia fazer e, agora, conhecia pessoas e lugares diferentes. Quando decidi me dedicar exclusivamente ao skate, os parças só me apoiaram. Eu queria melhorar sempre, cada vez mais e com ajuda, a coisa fluiu ainda mais suave.

E hoje posso dizer que sou feliz no skate. Agradeço a Deus, a dona Maria da Luz (a senhora que me ajudou na cadeia) e a todos os meus amigos. É nois, tá ligado?

Se você tá lendo isso, cara, não desiste dos caminhos bons. Rap, skate, grafite, literatura marginal é luz, mano. Segue os caminhos bons, longe das drogas, das coisas ruins. Boas pessoas vão ajudar. Tamo junto!